Após jogar o fino na melhor Portuguesa de todos os tempos e se transformar em um ser sagrado vestindo a camisa da Fiorentina-ITA, aquele endiabrado, técnico e sublime ponta-direita estava de volta ao Brasil por saudades de sua terra e sua gente. Mas, em 1959, aquela mesma gente decidiu vaiá-lo antes de um jogo da Seleção Brasileira contra a Seleção Inglesa, no Maracanã, meses depois de o time canarinho ter conquistado seu primeiro título mundial de futebol. As mais de 130 mil pessoas queriam ver Garrincha, o ponta-direita campeão na Suécia e titular absoluto. Ninguém queria ver aquele cidadão de bigode ralo, traços finos e esguio. Mas, na subida ao gramado, o substituto de Mané decidiu acabar com aquela audácia contra seu futebol em poucos minutos. Mais precisamente três, até o momento em que Canhoteiro dominou na esquerda, tocou para Henrique e este deixou para o homem vaiado dominar e mandar a bola para o gol. Minutos depois, ele construiu a jogada do segundo gol. Na sequência, driblou ingleses com a facilidade que só ele tinha e transformou as feições de ira e inveja em sorrisos. Ao final da partida, dois minutos de aplausos para enterrar os dois de vaias. O Maracanã estava se desculpando pelo crime. E aquele homem que fez do dia 13 de maio de 1959 a pedra fundamental de sua lenda, agradeceu e sorriu. Júlio Botelho, mais conhecido como Julinho Botelho, escreveu esta e muitas outras histórias fantásticas com um futebol de absoluta beleza e que teve desde sempre a mais pura essência do vitorioso futebol brasileiro de outrora: dribles fartos, velocidade, jogadas insinuantes, chutes devastadores e passes primorosos. O craque foi uma lenda em todos os clubes que passou e só não brilhou mais com a camisa da Seleção justamente por ter de concorrer com outro ser exuberante: Garrincha. Mesmo assim, quando Julinho vestiu o manto amarelo, ele foi impecável, decisivo e capaz de feitos como o descrito nas linhas anteriores. É hora de relembrar.
Julinho nasceu no bairro da Penha, em São Paulo, e cresceu sob as influências de seus pais portugueses. Por lá, pegou gosto pelo futebol e esbanjou sua qualidade nas várias partidas que disputou quando garoto. No entanto, ele não passou na peneira que fez em um dos principais times da cidade, o Corinthians, e acabou dispensado do clube alvinegro muito pelo fato de não ser aproveitado na ponta-direita, sua posição preferida. Sem se abater, Julinho tentou a sorte no Juventus, onde disputou uma partida preliminar na Rua Javari e, sem nem passar pelas categorias de base, já foi contratado para os profissionais e estreou dias depois pelo clube da Mooca, em 1950. Veloz, habilidoso, alto (tinha mais de 1,80m de altura) e muito arisco, o jovem gastou a bola em seu novo clube e não demorou a chamar a atenção de dirigentes rivais, em especial os da Portuguesa, que contrataram o craque em 1951 por cerca de 50 mil cruzeiros.
Na Lusa, Julinho teve o espaço necessário para mostrar seu futebol e, de quebra, a sorte em poder atuar ao lado de grandes jogadores como Nena, Noronha, Brandãozinho, Djalma Santos e Pinga, alguns dos atletas que formaram a melhor Portuguesa da história, lá no começo dos anos 50. Com sua habilidade, suas investidas ao ataque e seus gols quase sempre originados de chutes cruzados fortíssimos, Julinho se transformou rapidamente em um dos principais jogadores de São Paulo e, também, do Brasil. Em 1951, o ponta conseguiu uma doce vingança contra o clube que o dispensou (Corinthians) e marcou quatro gols na incrível goleada de 7 a 3 do time verde e vermelho sobre os alvinegros, em partida válida pelo Campeonato Paulista daquele ano. No mesmo ano, ele e sua Lusa encantaram plateias pela Europa em uma excursão recheada de vitórias marcantes sobre clubes como Atlético de Madrid-ESP, Galatasaray-TUR, Göteborg-SUE entre outros. Na temporada seguinte, Julinho recebeu suas primeiras convocações para a Seleção Brasileira que disputou o Campeonato Pan-Americano do Chile. Por lá, o craque marcou um gol e ajudou o time canarinho a conquistar o título após quatro vitórias e um empate em cinco jogos disputados, ficando à frente dos anfitriões e do Uruguai. Pela Lusa, o craque foi fundamental para o título histórico do Torneio Rio-SP, após uma bela campanha que terminou com goleada de 4 a 2 sobre o Vasco, no Pacaembu (com um gol de Julinho) e empate em 2 a 2 no Rio.
Em 1953, Julinho voltou a ser chamado para a Seleção e esteve na disputa do Campeonato Sul-Americano, no qual atuou em seis jogos e marcou cinco gols, quatro deles na goleada de 8 a 1 sobre a Bolívia. O Brasil foi vice-campeão, mas Julinho carimbou sua vaga entre os convocados para a Copa do Mundo da Suíça graças às suas atuações de destaque e, claro, aos seus jogos pela Portuguesa, que seguia desfilando suas virtudes em excursões e derrotando equipes como Alianza Lima-PER, Millonarios-COL, Stade de Reims-FRA, Schalke 04-ALE entre outros. Melhor ponta-direita do Brasil, Julinho teria no Mundial a chance de provar ainda mais seu valor. E, quem sabe, chamar a atenção de algum clube estrangeiro.
Em 1954, Julinho viajou até a Suíça para a disputa de sua primeira (e única) Copa da carreira. Ao lado de vários companheiros da Portuguesa e outros nomes como Castilho, Bauer, Nilton Santos, Didi e Baltazar, o craque começou da melhor maneira possível sua participação: vitória por 5 a 0 sobre o México e um lindo gol marcado após driblar dois adversários em um espaço curtíssimo do campo e chutar cruzado e com efeito no ângulo do goleiro Mota. Na partida seguinte, o Brasil empatou com a Iugoslávia em 1 a 1 e se classificou para a segunda fase. Nela, o time teve a ingrata tarefa de enfrentar a mágica Hungria e acabou perdendo por 4 a 2, num jogo cheio de lances ríspidos e brigas no que ficou conhecido como “A Batalha de Berna”. Naquele jogo, Julinho voltou a marcar um golaço, após disparar um chute de curva do bico da grande área e foi um dos poucos a não se envolver na pancadaria que tomou conta do jogo tanto dentro de campo quanto nos vestiários. Ele manteve-se sereno e sempre buscou jogo com sua habilidade e não com pontapés ou agressões.
Após ser um dos poucos a sair ileso ao fracasso brasileiro no Mundial, Julinho se valorizou ainda mais e, em 1955, ajudou a Portuguesa a vencer mais um Rio-SP ao marcar um dos gols da vitória por 2 a 0 sobre o Palmeiras, no duelo que selou o bicampeonato lusitano do torneio. Cada vez melhor, Julinho encantou Fulvio Bernardini, técnico da Fiorentina-ITA que o acompanhava desde o Mundial da Suíça e, em 1955, o levou para Florença por cerca de 400 mil liras (pouco mais de US$ 5,5 mil na época). E, como não poderia deixar de ser, Julinho também faria história na bota.
Em terras italianas, Julinho mostrou logo em sua primeira temporada que havia sido uma das melhores contratações da história da Fiorentina. Com dribles desconcertantes, velocidade incrível e jogadas fantásticas, o craque formou um inesquecível ataque ao lado de Montuori, Virgili, Gratton e Prini e levou a Viola a um inédito título no Campeonato Italiano de 1955-1956, quando a Fiorentina venceu 20, empatou 13 e perdeu apenas um dos 34 jogos que disputou, ficando 12 pontos à frente do vice-campeão, Milan. Julinho disputou 31 jogos e marcou seis gols, além de ter participado de vários dos 59 tentos anotados pelo time violeta. Campeão logo de cara, Julinho virou um ídolo instantâneo dos torcedores e manteve-se sublime na temporada seguinte, quando atuou em toda a campanha da Fiorentina na Liga dos Campeões da UEFA. O time italiano superou os adversários e chegou à final, mas teve que enfrentar o Real Madrid-ESP de Di Stéfano, uma torcida toda contra no Santiago Bernabéu e uma arbitragem controversa que prejudicou demais o esquadrão de Julinho, que perdeu por 2 a 0 e acabou com o vice-campeonato europeu. No Campeonato Italiano, a Fiorentina também foi vice e Julinho marcou nove gols em 30 jogos, com destaque para os dois gols da vitória por 2 a 0 sobre a Roma, fora de casa, em novembro de 1956.
Durante a temporada 1957-1958, Julinho recebeu a notícia de que era pretendido pelo técnico Vicente Feola para a disputa da Copa do Mundo de 1958, na Suécia, e foi convocado ao lado de Joel, ponta do Flamengo. No entanto, o craque demonstrou enorme profissionalismo ao abdicar da vaga em respeito aos atletas que atuavam no Brasil e mereciam mais a vaga do que ele. Neste caso, ele se referia ao endiabrado ponta que barbarizava com a camisa do Botafogo: Garrincha. Feola entendeu o recado, chamou o Mané e o Brasil foi campeão mundial.
Nesse tempo, Julinho recebeu, também, propostas para se naturalizar italiano e vestir a camisa da Azzurra, mas ele não abriu mão de sua pátria e se recusou a vestir a camisa azul. Pela Fiorentina, Julinho fez mais uma brilhante temporada (embora não tenha conquistado títulos), mas começou a sentir muita saudade de casa e de sua querida Penha. Com isso, ele ganhou o apelido de “Senhor Tristeza” dos italianos por andar cabisbaixo e deprimido e, de maneira amigável, deixou o clube para assinar com o Palmeiras. A torcida sentiu demais sua partida e até hoje o craque é uma lenda no clube e rende curiosas histórias dos tempos em que esteve por lá, como em uma viagem de trem que teve de passar o trajeto inteiro dentro de um banheiro para evitar o assédio dos torcedores.
De volta ao Brasil, Julinho seria uma das principais estrelas do grande time que o Palmeiras iria montar para o final dos anos 50 e início dos anos 60, um esquadrão que iria ganhar o singelo apelido de “Academia de Futebol”. Mas, antes de começar a brilhar com o manto alviverde, Julinho foi convocado para disputar sua primeira partida pela Seleção Brasileira, em maio de 1959, cinco anos após a fatídica “Batalha de Berna”. O confronto seria contra a Inglaterra, no Maracanã, em amistoso festivo do time canarinho que havia vencido a Copa do Mundo no ano anterior. Vicente Feola não chamou o titular absoluto, Garrincha, por motivos até hoje incertos (uns dizem que o Mané estava fora de forma, outros que ele abandonou a concentração e chegou atrasado e ainda que se apresentou no dia do jogo ligeiramente alcoolizado…). Na expectativa de ver o artista da camisa 7 com o manto verde e amarelo pela primeira vez após o título mundial, a torcida carioca teve uma reação instantânea e nada amistosa no momento da locução dos jogadores brasileiros que iriam entrar em campo: “Gylmar, Djalma Santos, Bellini, Orlando Peçanha, Nilton Santos, Dino Sani, Didi, Julinho…”. Assim que o narrador disse o nome de Julinho, as mais de 130 mil vozes começaram a gritar e a vaiar como jamais o Maracanã havia presenciado. O barulho ecoava pelas paredes, pelo ar, pelo gramado e entrava como facas afiadas nos ouvidos de Julinho à beira do túnel de acesso ao campo. Ao invés de ficar desnorteado, tonto, com medo e pedir para não jogar, ele manteve a calma e disse ao colega Nilton Santos que iria jogar bem, mas muito bem. Dois minutos após as vaias, o narrador completou a escalação do Brasil (“…Henrique, Pelé e Canhoteiro”.) e os atletas entraram no colossal Maracanã.
JULINHO, DIDI, HENRIQUE, PELÉ E CANHOTEIRO
Concentrado e com cara fechada, Julinho telegrafou os ingleses e todo o campo para iniciar a partida de sua carreira, o jogo de sua vida. Com apenas três minutos, Canhoteiro deixou com Henrique, este tocou para Julinho e o craque fuzilou o goleiro inglês para abrir o placar: 1 a 0. Na comemoração, raiva liberada e gritos de gol. Aos 29´, foi dele o passe para Henrique fazer o segundo gol do Brasil. Com a vitória mais do que consolidada, o time da casa continuou no ataque e Julinho foi pura arte a cada toque na bola e a cada drible humilhante em todo e qualquer jogador que aparecesse em sua frente. Nas arquibancadas, aqueles que vaiaram, sorriam. Aqueles que gritaram, sentiam na boca o amargor da culpa, da atitude sem pensar. Quando o juiz apitou o final do jogo, o público do Maracanã se levantou e aplaudiu a atuação exuberante de Julinho. O maior estádio do mundo na época ainda colaborou com sua acústica e aumentou o som das batidas de palmas, dos “parabéns”, do “valeu”, do “show de bola”. Eram os dois minutos de palmas para compensar os dois minutos de vaias. Estava escrita a lenda. No mesmo dia em que recebeu as maiores vaias da história do Maracanã, Julinho também recebia as maiores ovações possíveis para um só homem. O craque respondeu aos jornalistas sobre seu sentimento na época:
De que maneira poderia replicar às vaias? Confesso que fiquei estupefato. Natural que preferissem Garrincha. Vaiar-me porquê? O público esquece depressa, de certo já não se lembrava de mim. Pois tudo que fiz contra os ingleses foi reavivar a memória do público. De resto, tudo bem: o público acabou fazendo as pazes comigo” –. Julinho Botelho.
No dia seguinte, o craque ganhou as páginas de todos os jornais e revistas do país e, dias depois, foi tema de uma belíssima crônica de Nelson Rodrigues (leia no final do texto), aquela em que ele eternizou a frase: “Assim é o brasileiro de brio. Deem-lhe uma boa vaia e ele sai por aí, fazendo milagres, aos borbotões. Amigos, cada jogada de Julinho foi exatamente isto: — um milagre de futebol”.
Julinho disputaria mais alguns jogos pelo Brasil entre 1960 e 1965 e voltaria a recusar uma Copa do Mundo, em 1962, após sentir uma contusão em um treinamento pré-Mundial. Assim como em 1958, o craque cedeu seu lugar para outro jogador, Jair da Costa, que fez boas partidas e conseguiu uma contratação para a Internazionale-ITA tempo depois.
A torcida palmeirense percebeu que Julinho iria fazer história no clube logo em um clássico contra o Corinthians, em 1958. O craque jogou uma barbaridade, marcou um gol, levou uma falta violentíssima que o deixou desacordado, foi para os vestiários, voltou no segundo tempo, humilhou o corintiano Oreco com fintas de tirar o fôlego e, no mesmo lance, partiu pela linha de fundo e cruzou para o gol de Paulinho, o terceiro na goleada de 4 a 0 do Palmeiras. Era o prenúncio de tudo o que o craque iria fazer em quase 10 anos de Verdão. Ao lado do velho companheiro Djalma Santos e de vários outros talentos, o craque celebrou já em 1959 o título do Campeonato Paulista, que veio após partidas épicas contra o Santos de Pelé. Após dois empates, o time alviverde venceu o terceiro e derradeiro duelo de virada por 2 a 1, com o gol de empate marcado por Julinho.
Em 1960, Julinho voltou a marcar gols decisivos e foi campeão da Taça Brasil, com um gol dele na goleada de 8 a 2 do Palmeiras sobre o Fortaleza, na final. No ano seguinte, o craque disputou a Libertadores, mas o Palmeiras não conseguiu superar o forte Peñarol de Alberto Spencer. Em 1963, Julinho celebrou mais um título Paulista após marcar um dos gols na vitória por 3 a 0 do Palmeiras sobre o Noroeste, no jogo que selou o caneco alviverde. Em 1965, o craque vestiu a camisa do Brasil, bem como todo o time do Palmeiras, na inauguração do estádio do Mineirão, quando o Palmeiras-Brasil derrotou o Uruguai por 3 a 0. Em 1966, a equipe voltou a ser campeã estadual e se consolidou como a única a conseguir impedir uma supremacia do Santos de Pelé na época. Naquele ano, Julinho começou a sofrer com muitas contusões que o tiraram de boa parte dos jogos do Verdão. Em fevereiro de 1967, o ponta decidiu se aposentar de vez dos gramados em um duelo contra o Náutico, no Palestra Itália, com vitória alviverde por 1 a 0. Quando deixou o gramado, a torcida pediu, em coro, para que seu ídolo voltasse, mas ele não voltou. Após pendurar as chuteiras, Julinho foi treinador brevemente e preferiu investir em alguns negócios e curtir a vida em sua querida Penha.
Mesmo após anos de sua aposentadoria, Julinho seguiu reverenciado por todos no meio esportivo e foi convidado para as celebrações do aniversário de 40 anos do primeiro título italiano da Fiorentina, em 1995. O craque viajou até a Itália e foi aplaudido de pé pelos torcedores que ainda tinham na memória os dribles e as jogadas do lendário ponta-direita. Em 2003, o craque não resistiu aos problemas cardíacos que o acometiam há algum tempo e faleceu, aos 73 anos. Era o fim do homem que virou mito em três clubes, mas que deixou uma história repleta de títulos, gols, jogadas de pura arte e uma façanha jamais igualada ou superada por outra pessoa. As décadas passam, o futebol muda, mas o dia 13 de maio de 1959 ainda permanece intacto como o dia em que Julinho dobrou um dos mais místicos estádios do planeta. Um craque imortal.
A memória é uma vigarista
Amigos, Julinho começou a ser o meu personagem da semana a partir do momento em que o vaiaram. Foi, até, se me permitem a expressão, trágico. Insisto: trágico! Quem estava lá viu ou, por outra, ouviu. No instante em que o alto-falante do Maracanã anunciou Julinho em lugar de Garrincha, o estádio entupido foi uma vaia só . Menos eu. Eis a verdade: — eu não apupei, embora preferisse Garrincha. Parecia-me que o escrete sem o “seu” Mané era um mutilado. Na pior das hipóteses, eu achava que o Feola devia ter posto os dois: — Julinho na ponta-direita e Garrincha na esquerda. Mas um técnico tem razões que a razão desconhece. Puseram só Julinho e esqueceram o Garrincha. Verificou-se, então, o amargo e ululante desagrado da multidão. Naquele momento, ninguém se lembrou, no Maracanã e fora dele, de quem é Julinho na história do futebol brasileiro. Sim, amigos: — o homem andou pela Itália e quando voltou nós o olhamos, de alto a baixo, como se fosse um gringo qualquer, ou pior do que isso, como se fosse um perna de pau. Não há nada mais relapso do que a memória. Atrevo-me mesmo a dizer que a memória é uma vigarista, uma emérita falsificadora de fatos e de figuras. Por exemplo: — ninguém se lembrava de que, no Mundial da Suíça, contra os húngaros, Julinho fizera um carnaval medonho. De certa feita, driblara toda a defesa contrária para finalizar com uma bomba, e que bomba! O arqueiro nem viu por onde a bola entrou. Esse gol foi uma obra-prima e devia estar numa vitrine de turismo, para a admiração pateta dos visitantes. Pois bem: — ao ser anunciada a escalação de Julinho, a nossa memória apresentou-nos a imagem não autêntica, não fidedigna do craque, mas de um quase penetra do escrete.
Ao ouvir o apupo, eu fui um pouco oracular para mim mesmo. Imaginei o seguinte vaticínio: — “Julinho vai comer a bola!” Podia parecer uma piada e, no entanto, era uma grave profecia. Eis a verdade: — para o jogador de caráter uma vaia é um incentivo fabuloso, um afrodisíaco infalível. Imagino que Julinho há de ter entrado em campo crispado da cabeça aos sapatos ou, retifico, às chuteiras. Nunca um craque foi tão só. Era um único contra duzentos mil. Mas, homem de brio indomável, Julinho aceitou a luta: — bateu-se contra a multidão que o cercava por todos os lados, disposta a crucificá-lo em outras vaias. Mas se nós tínhamos esquecido Julinho, Julinho não estava esquecido de si mesmo. Foi Julinho em cada um dos 45 minutos, foi sempre Julinho e só Julinho. Em inúmeras ocasiões, o que ele fez com o adversário foi pior que xingar a mãe. E o primeiro gol, ah, o primeiro gol! Ele o marcou contra os ingleses, sim, mas também contra os que o vaiaram. Enfiou a bola de uma maneira, por assim dizer, sádica.
Jamais houve um gol tão amorosamente sofrido como este. A partir da abertura da contagem, todo mundo passou a reconhecê-lo, todo mundo admitiu para si mesmo: — “Este é o Julinho!” E era.
Ele não parou mais. Aquela multidão se arremessara contra ele como um touro enfurecido. Pois bem: — ele agarra o touro à unha e lhe quebra os chifres. Então, aconteceu o milagre. O ex-touro brabo, já manso, tornou-se outro bicho. Sim, amigos: — do primeiro gol em diante, a multidão transformou-se na macaca de auditório de Julinho. Se ele apanhava a bola, os duzentos mil espectadores arreganhavam o riso enorme e já gozavam, por antecipação, o que o Julinho iria fazer. Vejam vocês as ironias da vida e do futebol: — de um momento para outro, o vaiado, o apupado, o quase cuspido transformava-se num triunfador. E, de fato, Julinho foi grande. Nos pés de Julinho a jogada se enfeitava como um índio de carnaval. De certa feita, come um, dois, três, quatro e quase entra com bola e tudo. Imagino que, nesse momento, Lorde Nelson há de ter perguntado, lá do alto, para o mais próximo companheiro de eternidade: — “Quem é esse cara?” O “cara” era Julinho, sempre Julinho.
Assim é o brasileiro de brio. Deem-lhe uma boa vaia e ele sai por aí, fazendo milagres, aos borbotões. Amigos, cada jogada de Julinho foi exatamente isto: — um milagre de futebol.
[NÉLSON RODRIGUES ]
Manchete Esportiva, 16/5/1959
Nascimento: 29 de julho de 1929, em São Paulo (SP), Brasil. Faleceu em 11 de janeiro de 2003, em São Paulo (SP), Brasil.
Posição: Ponta-direita
Clubes: Juventus-BRA (1950-1951), Portuguesa-BRA (1951-1955), Fiorentina-ITA (1955-1958) e Palmeiras-BRA (1958-1967).
Principais títulos por clubes: 2 Torneios Rio-SP (1952 e 1955) pela Portuguesa.
1 Campeonato Italiano (1955-1956) pela Fiorentina.
1 Taça Brasil (1960), 1 Torneio Rio-SP (1965) e 3 Campeonatos Paulistas (1959, 1963 e 1966) pelo Palmeiras.
Principal título por seleção: 1 Campeonato Pan-Americano (1952) pelo Brasil.
Eleito o 73º Melhor Jogador do Século XX pela revista Placar: 1999
Eleito um dos 1000 Maiores Esportistas do Século XX pelo jornal The Sunday Times
Eleito para o Time dos Sonhos do Palmeiras pela revista Placar: 2006
Disputou 191 jogos e marcou 101 gols pela Portuguesa.
Disputou 98 jogos e marcou 23 gols pela Fiorentina.
Disputou 269 jogos e marcou 81 gols pelo Palmeiras.
Disputou 31 jogos (4 não-oficiais) e marcou 13 gols pela Seleção Brasileira.
[ Fonte Imortais do Futebol ]
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